30 de mai. de 2011

Kombinado

@pv_lopes


Quando era pequeno, meu sonho era ter uma Kombi. Branca e verde. Direção branca. Espaço imenso, capaz de carregar tudo, dar carona a todos.

Aos poucos fui descobrindo que as pessoas seguem seus rumos, tomam decisões que as levam para  lugares diferentes. Com isso vi que espaços vazios começaram a surgir na Kombi.

A partir daí o Fusca passou a fazer mais sentido. Pequeno, robusto. Espaço reduzido, apenas as pessoas mais importantes poderiam ir junto. E não poderíam carregar nada além de uma mochila.

Hoje o Fusca segue fiel, com todos os ocupantes em seus devidos lugares e o cinto bem ajustado para que sigam viagem com segurança e conforto.

Às vezes parecem estar um pouco desconfortáveis, às vezes a velocidade das coisas que passam pela janela as incomoda. Pequenas turbulências que na medida do tempo se resolvem.

Tanque cheio. Hora de seguir viagem.

29 de mai. de 2011

Salvando Bollywood

Paulo H. Lange
@ph_lange


Antes de entrar no avião de volta para casa, teria que me certificar que eu me fizesse entender: "ESTE PAÍS É FEITO DE LUNÁTICOS! ATÉ NUNCA MAIS!"

Que tal começar do começo? Mais uma reunião no oriente. Bollywood tem novos projetos cinematográficos e quer americanos trabalhando para eles. Pois bem, cá estou eu. Infelizmente.

"Ah, senhor Tiger! Finalmente! Por acaso perdeu-se no caminho?"
"É uma longa história, senhor Vhadrik. Pra começar, minha pasta foi roubada por um maldito macaco no aeroporto... E quando pedi o destino ao motorista, que o senhor garantiu que conheceria, ele me largou num bar imundo com o mesmo nome do seu estúdio. Pensei que já que deveria esperar outro táxi, por que não beber alguma coisa aqui mesmo? Talvez isso me matasse e eu não precise mais sentir o cheiro que emanava de todos os cantos daquela espelunca. Mas fora eu ter pisado na lama de um bueiro e ter que jogar fora meu mocassim, depois disso, correu tudo bem."
"Hmm... Por acaso, sua pasta é parecida com esta?"
"Sim! Mas como vocês--"
"Caso o senhor não saiba, adestramos o "maldito macaco" para carregar sua bagagem como parte da recepção de nossos convidados. Disponha."
"Desculpe, eu não--"
"E o bar com o mesmo nome do estúdio pertence ao meu irmão."
"Mas pelo menos o preço era justo."
"É, ele está tendo problemas com a justiça e pretende vender o bar em breve..."
"Pois é, meu pai tinha um bar, também, eu--"
"...E a vigilância sanitária já fechou o bar duas vezes, talvez consiga pelo menos pagar a fiança do filho."

"Hmm... Situação difícil."
"Mas ele já está acostumado, é o quarto preso esse ano, é provável que não consiga."
"Mas o que se pode fazer, afinal, não é mesmo?"
"Ah, se aquele bastardo não fosse tão cabeça dura... Eu lhe disse pra aceitar casar com a nossa prima, mas não "O amor é mais importante irmão..." Que coma os ratos que ele cria no próprio fim de mundo que é aquele bar. Que vergonha para a família."
"Desculpe, não percebi que havia um conflito fam--"
"Conflito? Que nada, somos vizinhos... Almoçamos juntos lá todos os sábados!"
"Ehr... Eu, é melhor irmos direto para o projeto, não é mesmo? Me conte, o que querem fazer?"
"Um filme de ação mais moderno, ambientado na cidade, estilo Duro de Matar, Máquina Mortífera, sabe?"
"Moderno?"
"É, trouxemos o melhor ator de ação de toda a Índia pra esse estúdio e o filme vai ser feito sob medida para ele. É o senhor Jigranindsa."
"Hm, isso é perigoso, eu diria, vai saber como são esses atores daqui... Nem cheguei a vê-lo, o projeto todo está na minha pasta. Mas vamos ver isso. Ah, um cafezinho por favor, e mande rápido, que esta reunião já começou atrasada... Mas então, quem é o homem?"
"Você acabou de pedir um cafezinho para ele."
"Ah, me desculpe, senhor Jigranindsa... Eu... Então, qual é o roteiro?"
"Começa com o rapto da prometida dele, numa cidadezinha de interior. Ele descobre que é a organização terrorista Al-Qaeda que está por trás de tudo e inicia uma busca até chegar no QG deles e explodir tudo."
"É, parece bem... Indiana. Posso ver que o enredo não é tão conciso. Mas acho que o público engole com alguns milhões a mais em cenas de ação."
"... E temos muitas explosões para vocês americanos."
"Hehe, pois é, sei que têm."
"Camelos também, muitos camelos."
"Sim, sim, mas veja... O show business não se faz só com perseguições a camelo... O que eu quero dizer é que--"
"... Garrafas quebrando, estilhaços, faíscas, temos uma rampa para os jipes voando... Como pode ver, vai ser um sucesso garantido."
"Tudo bem, mas..."
"... Temos quase uma tonelada de dinamite, vai ser o melhor filme da década."
"TUDO BEM, MAS... Mas vejo aqui que o protagonista tem 23/24 anos... E seu ator tem quase 50. É uma diferença bem visível, acho que talvez, por alguns momentos entre uma e outra explosões, parem pra pensar nisso... Um rapaz recém saído da faculdade com habilidades de um veterano da guerra... Alguma coisa não fecha... E tem mais, esse bigode o envelhece..."
"Mas o quê!? Cortar o bigode, nunca!"
"Mas esse bigode já está até meio grisalho, não vai dar certo..."
"É a marca registrada do senhor Jigranindsa, está fora de questão."
"Tudo bem, então é só mudar a idade no roteiro, acho que não vai atrapalhar em nada."
"O roteiro é o roteiro, fora de questão."
"Adiante então..."
"Temos então o clímax, uma perseguição automobilística cheia de emoção no meio de Nova Délhi, o público vai delirar."
"Mas o filme não se passa num povoado no interior?!"
"Pois bem, a perseguição começa lá, na verdade, numa área de conurbação."
"Mas aqui diz que o povoado fica a mais de 200 quilômetros de lá!"
"O clímax está planejado para durar aproximadamente sessenta por cento do filme, senhor Tiger... Nós assistimos a seus filmes, a América ama perseguições automobilísticas. Um sucesso!"
"...Deixa eu adivinhar: carros voando?"
"Como pássaros."
"Explodindo?"
"Pretendemos usar tanta dinamite quanto possível e queimar a retina dos espectadores, vão ficar sem enxergar direito durante uma semana. O filme vai ser um sucesso!"
"Camelos?"
"Uma perseguição automobilística sem camelos é como um Big Mac indiano feito de carne bovina, senhor Tiger, uma profanação da tradição cinematográfica indiana; uma heresia."
"Mas onde os camelos entram, exatamente?"
"Logo após o carro do protagonista explodir."
"Ele escapa logo antes, eu presumo... Acho que iremos precisar de dublês extras..."
"De maneira nenhuma! Ele é impulsionado pela explosão de uma bomba implantada logo abaixo do seu banco e pousa suavemente sobre as costas de um camelo que sai atropelando um batalhão de trinta soldados armados, galopeando por cima de suas cabeças e chutando seus capacetes. Projetamos esta cena para as crianças"
"É a coisa mais incrível que já ouvi, vocês me surpreendem a cada novo detalhe! Aqui fala sobre helicópteros, o que tem isso?"
"O protagonista salta de cima de um prédio de quinze andares e atravessa três helicópteros"
"Não quero nem saber como ele chega até o décimo quinto andar com o carro. Helicópteros são caros, senhor, o senhor tem verba para isso?"
"Não precisamos, é só repetir o take do carro atravessando o helicóptero três vezes seguidas."
"Muito bom, vocês pensam em tudo, mesmo!... Um momento, vou até o banheiro, não aguento tanta ação em tão pouco tempo, heh!"

"Sim, vá, senhor Tiger, temos muito mais explosões para o senhor... Viu, senhor Jigranindsa, os americanos adoram nosso cinema. O senhor vai brilhar e nós ganharemos o mundo. Foi fácil convencê-lo, não?"

"Até nunca mais, otários."
A porta se fecha e eu volto para o mundo real, um sonho expressionista de odores, cores e pessoas. O que Orson Welles diria? Nada, provavelmente ele não seria tão maluco de vir para cá.



25 de mai. de 2011

Poema no ônibus

Ramiro Simch
@miroez

Nestas corretas
Duplas de bancos
Brancos e negros
Falam e pensam

Sentam nos bancos
Voltam pra casa
Uns não se sentam
Pensam em pé.


23 de mai. de 2011

Conselho gratuito

@pv_lopes


Um passo à frente, por favor. Pedido ambíguo. Conselho gratuito. 
Desconhecido e ao mesmo tão próximo, profere aquela que pode ser uma das mais significativas frases.

Para onde seguir. Tantas possibilidades. Quantas dúvidas. A decisão de , por um momento, ser conduzido sem preocupação. 

Por que não tentar outra vez, sem medo de errar.  Por que não pedir desculpas ou fazer piada dos erros. 
Vazio, capaz de aproveitar todas as possibilidades. Cheio, ao ponto de explodir. Variações de um mesmo tema, inconstâncias diárias. Desfechos ao lado.

As dúvidas acabam quando alguém acha uma solução. Mas esquece que quem sempre acha acaba sempre se perdendo.




21 de mai. de 2011

Até que ponto o amor é suficiente?

Ana Elizabeth S. de Azevedo
@anabebeth


Até que ponto o amor é suficiente?

Estava tudo perfeito, como deveria ser, pensavam eles. Ele tinha voltado da guerra. Vivo. Completo. Um pouco transtornado talvez.  Ele tinha se ajoelhado e lhe dado o anel. Estava tudo escrito para dar certo. Eles passeavam de bicicleta pelo campo. Tomavam banho de mar ao entardecer. Deitavam-se para apreciar a lua. Faziam amor no celeiro. Eram cenas de filme, com luz dourada e trilha sonora romântica e apaixonante. Tudo fazia sentido. Como deveria ser.

Com o tempo, o conto de fadas tornou-se realidade. Ele continuava correndo de bicicleta. Ela continuava não conseguindo alcançá-lo. Ele teimava em jogar água gelada nela. Ela tinha a mania de fazer escândalos ao mergulhar. Ela não parava de falar enquanto deitada na relva. Ele parecia não escutar. Ele continuava indo com pressa, sem pensar nela. Ela continuava hesitando para se entregar. Eram cenas de filme, com luz cinzenta e trilha sonora de um dramalhão sem fim.

Até que ponto o amor é suficiente? Ela havia esperado três anos por ele. Ele havia lutado três anos por ela. Estava escrito, desde os tempos da infãncia. Não iria acabar.

Não iria acabar?
Até que ponto o amor é suficiente?

Ele carregava angústia e ela sentia-se pesada e só fazia chorar.
Essa cena alternava-se.
Ele a carregava nos braços e declarava seu amor e ela sentia-se completa e só fazia sorrir.
Alternância que conturbava, que parecia não mais fazer sentido. 

Como tudo deveria ser?
Perguntaram-se. 
Deitaram-se para ver a lua, deitaram-se para ver se a lua dava-lhes respostas.
Só restava confabular.

Trocaram olhares cúmplices. 
Como tudo deveria ser?
Até que ponto o amor é suficiente?


18 de mai. de 2011

Poltergás

Ramiro Simch
@miroez

sorriu e envolveu os magros
fluiu e esvaiu os corpos
girou e ergueu as almas
sumiu e deitou os mortos


o soldado registrou o momento, na câmara.

17 de mai. de 2011

Conejo I

Juliano  Milo Rodrigues

Meu primeiro trabalho como "ator".
 Minimetragem criado, com maestria, pelo Juliano.


16 de mai. de 2011

Cegueira para as feições

@pv_lopes



O fim parece trazer a cegueira para as feições. Aquele rosto, que parecia tão belo, perturba a cada momento. Transforma todas as pessoas em uma mesma, todos os rostos em um só.

Aquele que parecia ser o grande amor, e que por isso foi levado a todas as provas, mostrou-se vulnerável. Frágil, como não deve ser um sentimento incondicional. Efêmero, como uma troca de olhares.

Descobre-se que o amor só era grande para que pudéssemos depositar nele todas as nossas esperanças. Todos os projetos confiados em uma mochila imaginária colocada nas costas da pessoa que queremos mais próxima de nós.

Pegamos a mochila de volta. O grande amor chegou ao fim. As feições precisam ser reconhecidas novamente.

14 de mai. de 2011

Antes da Chuva Cair

Gabriel Oro
@orofeelings

Era tarde.

Tarde demais para eu estar acordado, mas não conseguia dormir. Alguma coisa no ar, algo que eu sentia a cada fechar de olhos, algo que há meses não havia sentido. Uma tensão deixava pesado o ar daquele lugar maldito, eu quase conseguia enxergar o ar que respirava. Mas não era pelo frio. Lá não existia frio.

Levantei daquele colchão maltrapilho e andei pela tenda. Leite. Em casa sempre me ajudou a dormir, vou tomar um pouco de leite e esquecer tudo isso. Peguei a lata com leite que alguém havia deixado por ali e liguei o fogo. Assim que o líquido começou a esquentar o cheiro entrou por minhas narinas e tomou conta do meu corpo. Por um segundo eu não estava ali. Era o melhor segundo em meses. Durante aquela minúscula fração de tempo, perdida entre aqueles homens sumidos naquela terra que os deuses esqueceram, eu fugi. Eu fugi porque eu lembrei. E lembrei de um jeito muito mais forte que de costume, muito mais real.

Lembrei dela.

Eu estava sentado em uma cama macia, com lençóis limpos, em um quarto bem iluminado. A porta se abria devagar, ela entrava sorrindo e olhando pra mim, meu Deus, como aquele sorriso era lindo. Ela se sentava na cama ao meu lado e se abraçava em torno de meu pescoço, seus braços me envolvendo, suas mãos macias tocando meu rosto. “A cada dia ele fica mais lindo.” Ela diz, me beijando de leve. “Ele tem os seus olhos...” E conforme eu me mexo pra abraçá-la, sinto em suas mãos o cheiro morno da última refeição que ela prepara para nosso filho todas as noites.

Nunca pensei que lembraria de minha mulher pelo cheiro de leite.

Desliguei a chama. Sentei e bebi devagar enquanto uma brisa triste entrava na cabana e afagava meu peito nu. Chuva, deve ser chuva. Aquela tensão que carregava o ar à minha volta só podia significar a iminência de precipitação, era exatamente aquele mesmo sentimento. Quando o céu silencia, quando todas as criaturas se escondem e o vento se vê livre para andar imperturbável pelas ruas, flutuando devagar, sem esbarrar em ninguém. Eu sempre senti isso, sempre tive essa tensão pouco antes que a chuva desatasse a cair. E sempre tive medo dela.

Choveu no dia em que ele me deixou. Choveu no último dia em que o vi.

Foi numa terça-feira à tarde e eu sentia essa mesma tensão no ar. Eu era uma criança e brincava no quintal quando o telefone tocou. Ouvi minha mãe falar por alguns segundos, e então tudo ficou quieto. Encontrei-a sentada na cozinha com o rosto nas mãos, quando me viu, me abraçou e chorou em meu ombro. Nunca tinha visto minha mãe chorar, era uma mulher forte. Eu abracei também e, sem ainda saber por que, chorei de volta. O motorista que atropelou meu pai não estava bêbado ou sob o efeito de qualquer substância, era um senhor honesto, tinha duas filhas, cumpriu sua pena e, mesmo sem dispor de muitos recursos, pagou todos os meses a dívida que o tribunal impôs, sem atrasar uma única vez até o dia de sua morte. Por toda minha vida eu odiei-o profundamente. Choveu muito forte, naquele mesmo dia, assim como na manhã seguinte, durante o enterro de meu pai.

 Os céus também choraram quando, anos depois, eu perdi o pouco que restava de minha fé. Ela foi se extinguindo gradualmente, até que uma manhã eu percebi que não restava mais havia. E finalmente, alguns meses depois, caiu uma nova tempestade no dia em que me alistei voluntariamente no exército. Choveu quando perdi meu pai, quando perdi meu deus e quando vendi a minha liberdade.

Por isso, aquele silêncio no ar me assustava.

Mas eu estava naquele lugar há quatro meses, e era a primeira vez que me sentia daquele jeito. Terminei o leite e deitei, quieto. Quatro meses de minha vida, longe de casa, sem dormir direito, acordando cedo, dividindo uma tenda com nove homens sujos com o sono mais pesado que eu já vi. E para quê? A noite estava escura demais, não havia lua ou estrelas no céu. Meu medo aumentava. Um som curto, tímido, cortou o silêncio. Uma gota no teto da barraca. Depois outra, e mais outra, até que tudo que se ouvia era a melodia sombria da água caindo no meio daquele quase-deserto. O deserto perdido no meio da guerra.

Peguei uma foto de meu filho debaixo do travesseiro. Olhei para ela por vários minutos, tinha mesmo os meus olhos. Antes de viajar, comprei uma bicicleta pra ele, sua primeira, e deixei do lado de fora de seu quarto, mal podia esperar para voltar e vê-lo andando nela. Meus olhos se encheram de lágrimas. A chuva diminuiu até parar por completo. Lembrei das últimas palavras que eu lhe havia dito antes de vir, que “não importava o quão longe eu estivesse, estaria sempre com ele, e nunca deixaria que nada acontece...”

A explosão que seguiu me jogou pra fora da cama. Meus companheiros gritaram, ouvíamos lá fora vozes finas e algum dialeto impronunciável. A tenda de frente para a nossa ardia em fogo e abria um rasgo vermelho sangrento no breu escuro da noite. Ouvi a voz dos comandantes ordenando que assumíssemos os postos de combate, me desesperei. Outra bomba caiu ali perto e eu só tive tempo de pegar o fuzil e colocar o capacete antes de sair de lá e ver o fogo tomando conta do acampamento. Subi na pequena torre de madeira que ficava sobre uma das trincheiras, meus companheiros ficaram lá embaixo, eu era o atirador. Carreguei o fuzil sozinho, olhei ao redor.

Outra bomba caiu ali perto, depois mais uma, pude ver minha tenda queimar, tudo que eu trouxera comigo estava dentro dela. Tiros ressonavam, mas eu não sentia cheiro de pólvora, nem de fumaça, pois o vento havia começado a soprar forte na outra direção e tudo que eu cheirava era o aroma da terra e da grama molhada que havia ao norte, me acalmei. Já havia passado a chuva, se eu morresse, já havia passado a chuva. Enxerguei de onde vinham as bombas.

Mas eu não queria.

Não era a primeira vez que eu pegava uma arma na mão.

Muitos anos antes, meu pai me encontrou brincando com seu revólver, que eu havia encontrado sobre o armário de seu quarto. Espaço para seis balas, eu tirei todas. Apontei a arma vazia para a parede e disparei. Um clique abafado e silêncio... meu pai viu. Tirou o revólver de mim, mas antes de guardar, resolveu se livrar da carga, abriu o revólver, de seis espaços, cinco estavam vazios. Eu esqueci uma bala. Naquele dia ele me fez prometer que eu nunca, nunca mais brincaria com armas.

Ele me fez prometer.




Parecia que apenas um deles tinha armamento pesado, mirando de uma trincheira improvisada. Acredito que nos vimos ao mesmo tempo, pois uma bomba caiu a metros de onde eu estava quase que no mesmo instante. Eu estava engatilhado, meu antagonista precisaria de alguns segundos para repor a carga. Apontei pra ele, senti o metal gelado do fuzil encostando em meu rosto, o gatilho ardendo na ponta de meus dedos. Firme... firme...

Eu não queria.

Firme... outra bomba explode a apenas metros de mim. Ouço um grito agudo, sinto medo. Seguro o fuzil ainda mais apertado em minhas mãos, faço a mira com cuidado, há espaço pra muitas balas nessa arma e muitas vidas nessas balas. Miro bem e fecho os olhos.

“Pai, me perdoa.”

E o tiro sai.

E a pólvora queima meu rosto.

A foto de meu filho ainda queima lá embaixo.



Construção civil

Ramiro Simch
@miroez

Pé na lama, rugosa tal qual o coração
Tal qual a tez pétrea, fendida
Fodida e fodida cada dia da vida
Vidinha que desde berço fez doer João

Tímpano lateja bem cedo, talvez pela agudez
Da voz de agulha que empurra nosso bom
Na via crucis matutina, aos fones com som
Não permite-se faltar, nem que seja uma vez.


10 de mai. de 2011

É que eu tive um teto que ninguém teve, acho

Mario Arruda
@arruda_mario






























a ideia é que começa a parada ali na foto
tipo
enforcamento
daí dá uma parada creisse ali
teletransporte
[risadas]
e a mina vai parar no supermercado
na frente dos legumes
[risadas]
não tem muito sentido, mas é isso


http://www.flickr.com/arruda_mario
http://marioarruda.tumblr.com/

9 de mai. de 2011

Primeira Vez

@pv_lopes


O passado molda cada pessoa. O momento gravado para sempre, nas sombras da lembrança, tornam o futuro uma infinidade de primeiras vezes. Algumas inéditas, outras em novas versões daquelas já vividas.

A primeira vez a tirar a roupa na frente do novo relacionamento, o primeiro segredo contado e o primeiro fato omitido. O primeiro suco no bar clássico, o sorriso de canto trocado com a dona que pensa: - Realmente, não sabe ficar só!

Dezenas de histórias e a expectativa de que a próxima terá um final feliz, ou melhor, não chegará ao fim. As cicatrizes que demoram a curar. As juras de mudança e os pequenos erros que se repetem. 

A mistura de escolhas e desejos que formam cada um, que levam a querer o fim e o início. A mistura que faz, ao mesmo tempo, amar e odiar uma mesma pessoa. A inconstância dos sentimentos que demonstram a fragilidade das relações. 

Que reforçam as relações.





 

6 de mai. de 2011

O meu amor é amor de verdade

Ariel Engster
@ensta

Não há lugar específico para se apaixonar, não há lugar onde isso não possa acontecer. Nem ao menos há um lugar de referência, como a igreja para rezar ou o hospital para se sarar. Eu, por exemplo, me apaixonei no Bambus.
Acredito que o Bambus não seja o melhor lugar para um novo amor. Não por ser um bar - mas, sim, por ser caro. Imagine entrar num bar muito barato. Tu vais lá só porque quer beber uma cerveja e não quer gastar. O que te atrai não é a beleza do lugar, não é o alternativismo totalmente calculado ou o status que frequentar esse ambiente pode te dar. Tu vais lá só pra te satisfazer. E eis que encontras uma garota por lá! E eis que assim sabes que ela não está lá pela beleza, pelo alternativismo ou pelo status. Ela está lá só para beber uma cerveja e esta cerveja é barata. Uma mulher que se contenta em satisfazer suas vontades, sem precisar fazê-lo do modo mais rocambolesco. É isso que um homem mais precisa, é por isso que num bar caro não se encontra um bom par.
E assim voltamos ao Bambus. E à minha paixão. Loira, tinha lá seus um metro e setenta. All-star preto, calça dinz preta, casaco preto. Camiseta branca. Os cabelos presos num rabo-de-cavalo. E olheiras, aparentemente eternas. Não as havia notado, alguém apontou-mas. Defendi meu amor: disse que olheiras assim só tinha quem muito vivia. Para os sossegados, nem olheiras, nem calos, nem cortes.
Amigos me olharam reprovando: ela não era bonita! Desculpem, amigos, mas vocês nada entendem de amor. Amor verdadeiro é esse meu: não apresenta motivo, surge misterioso, cresce arrebatador e morre súbito. Morre puro, morre casto. Morre sem nunca ter sofrido dos males do amor.
Olhei para ela. Insistentemente. Parece minha sina, ver e não ser visto. Queria pedi-la em namoro ali mesmo, mas ela não me via! Eu, sim, amava de todo coração. Via e não era visto, amava e não era amado. Meu amor é tão amor de verdade que sequer pede amor em troca. Basta-se em si mesmo e é feliz assim. Meu amor é fulminante - e humilde, pedinte, lancinante.
O amor logo se foi. Ou, melhor, eu fui embora. Tinha de cumprir meu destino, pois, se é fulminante, meu amor é instantâneo; se instantâneo, é fugaz; mas, mesmo se fugaz, é perene. Não importa quanto tempo passe, quando rever a garota, meu amor por ela pulará de seu esconderijo e tomará conta de mim. E, logo em seguida morrerá. Novamente puro, novamente casto.
Vós, mulheres, não sois verdadeiramente amadas se não por um amor como o meu. Porque este amor existe sem interesse. Sem sequer o interesse de ser correspondido. O meu amor é que é amor de verdade. Pra ele não importa a beleza, não importa o dinheiro. Meu amor não obedece regra nem preceito algum. Meu amor é o mais anarquista dos anarquistas.
Temo, porém, que há de chegar a hora em que meu amor acabará. Chegará uma garota, a única garota capaz de me fazer mudar. Ela destruirá tudo o que eu conhecia antes e fará com que meu amor não seja mais fugaz, mas eterno. Fará com que todas as paixões passadas se façam arquivos-mortos numa estante burocrática, enquanto que ela se fará a própria brincadeira, o lado lúdico da vida. Desse momento em diante, meus amigos, admitirei nada mais saber do amor. Desse momento em diante, ela me ensinará qual o amor de verdade.



5 de mai. de 2011

Projeto CCOMA

Em uma conversa com o @pv_lopes, sobre música de qualidade, conheci o Projeto CCOMA. Um duo de Future Jazz, que faz com maestria a mistura entre trompete, tambores e música eletrônica. Sem falar no Hang Drum, um dos instrumentos mais espetaculares que já vi.

O duo é formado por Roberto Scopel e Swami Sagara. É audição certa para quem busca boa música.


4 de mai. de 2011

Usou os últimos litros de gasolina nessa pataquada

Ramiro Simch
@miroez


- Está tomado por ódio. Nenhum desses lampejos de amor-próprio atingem ele e o fazem se segurar, logo quando é mais necessário. Entra no carro e arranca. Vai usar os últimos litros de gasolina nessa pataquada - reabastecer depois só Deus sabe quando. A vida já não era fácil antes de tudo isso, agora é pior ainda. Mas nada interessa por ora, exceto o acerto de contas. Atropelando paralelepípedos, passa por um grupo de adolescentes numa esquina bebendo cerveja e fumando maconha num bong. Ele aplaude mentalmente a audácia dos jovens, se autoincentivando a prosseguir. Atravessou a cidade num tempo recorde: oito minutos de sua casa até o portão do condomínio, onde é admitido pelo porteiro simpático. Mostra pro homem a caixa de bombons embrulhada em papel de presente, à guisa de explicação desnecessária. Uma surpresa romântica no meio da noite. Guia o automóvel até a garagem da residência dela e estaciona corretamente. Entra na cozinha e toma um copo de água. O ímpeto diminuiu, ele está raciocinando melhor. A coisa vai ser feita do jeito certo. Respira fundo, tira os calçados. Sobe as escadas, mas a cada passo sua indignação aumenta de novo. Ante a porta do quarto dela, ele torna a ser a bomba de raiva que era há poucos minutos. Chuta a porta, arrombando-a. Ela acorda assustada com o barulho, encolhendo-se na cama. Pergunta por que ele não avisou que vinha, por que está fazendo isso. Ele chora de desespero, gritando “Traição não! Por quê?! Tudo menos traição!” Ela apavora-se com o interlocutor ensandecido, e começa a chorar também quando ele saca uma pistola. “Não me mata! Meu amor, eu nunca te traí! De onde tu tirou isso?! É mentira! Não me mata, por favor!” Ele urra de dor com os apelos da amada. “Cala a boca! Eu te traí, fui eu que te traí! Arghh!” Ele enfia a arma na própria boca e dispara, caindo sem vida no carpete.

- Porra... Tá legal, cara. Sei lá, melhora mais esse final aí e coloca no blog lá.

2 de mai. de 2011

Caixa de música

@pv_lopes


Caixa de música. Lembrança de uma música. Sorriso em silêncio.
Certos momentos marcados em acordes.

Pessoas que marcaram para sempre a nossa vida. Sumiram. Aparentemente sim, mas estão apenas deleitando-se na nostalgia que nos embriaga.
Aparecem a cada vez que colocamos aquele disco para tocar. Cada faixa é capaz de trazer de volta as sensações vividas. Olhos fechados, respiração ofegante. E agora, o que fazer?

Agora já sabemos o que fazer. As descobertas acontecem em fragmentos, cada uma ao seu tempo.
As músicas são outras, outros sentidos estão presentes. 
Apesar disso os velhos discos estão lá, um pouco empoeirados,  mas cheios de histórias. Servem para trazer lembranças felizes quando precisamos.

Quanto as pessoas que são trazidas de volta durante essas músicas, não sei. Torço para estarem bem, felizes. Guardo ótimas lembranças delas e um certo carinho, mas acredito que devam permanecer na duração de uma música.