29 de abr. de 2011

O Rio das Almas

Paulo H. Lange
@ph_lange


(...)"E, afinal, o que seria de mim? Nada, meu senhor! Nada..."

"E isso, acaso, é motivo de preocupação? Ora, um nada por outro."

"Seu desdém me espanta, meu senhor. Me pergunto se há algum coração perdido dentro de ti, ou é vazio completo."

E tocava-lhe o peito com estocadas vigorosas de um indicador calejado, como se fosse provocar além de asco, alguma reflexão em seu senhor. Acreditava, ingênuo, que algo como o gérmen do questionamento moral fosse impugnado em seu senhor por cada vez que o tocasse. Talvez não o tenha tocado tantas vezes quanto o necessário.

"Por que motivo gasta teus pensamentos com objetivo tão fútil? Compaixão é o refúgio dos inseguros, dos perdidos e dos que a necessitam tanto quanto cedem. Ademais, não faço a linha da demagogia, e se me dou ao desserviço de falar-lhe é com sinceridade."

"Ha! Sinceridade mordaz! Qual ninguém presta-se a ouvir. Do contrário, invades o cérebro de quem te aproximas com sua língua ferina, não te poupas de golpes à navalha mal-afiada em cada ouvido do teu semelhante, se for; te comunicas com a cortesia de uma víbora antes do bote. E não me ponha na cara esse seu vocabulário vil. Tua imagem me aparece em pesadelos e eu os vivo todos os dias na obrigação de lhe ser fiel. A que ponto chega-se! A insanidade me tomava ainda esses dias do mês... Amaldiçoo agora a maldição que roguei ao negro dia em que conheci tua terra. Tão cego de ira que tornei-me, culpei a mim, a ela e a Deus, meu bom Deus, que julgo eu não ter conhecimento de sua existência, por não ter fulminado o senhor quando lhe cabia, no início de seu surgimento neste mundo! Desde cedo, o sacrifício de sua doce mãe para trazer-lhe à vida já mostrava a quê o senhor veio: o infortúnio. O senhor é quem traz os corvos até os cadáveres, é o senhor que espalha os insetos pelas casas, é o senhor que traz a peste! Esta terra negra guarda o sangue dos teus desafetos, e bebemos o sangue deles ao comer o que esta terra nos dá de comer! Tenho confissões que sobressaltam o vigário, de descrições da minha sede de revide! É o pior que fazes: Contamina com teu veneno e torna teus servos pares de ti em perversidade... Acaso tivessem o teu poder, tua história teria há muito sido feita esquecida."

Enquanto o servo vociferava seu monólogo, o senhor apenas arqueava suas sobrancelhas, demonstrando que havia algo de esperado na cena. E algo que esperava-o depois.

"Faz o que te mandam quando viram-te as costas e não podes mais ouvi-los: Fode-te! Dana-te! Dana-te!"

E parte em direção ao seu aposento, certo de que não tardará e a desforra senhorial pousará sobre sua cabeça, ou estrangulando sua traquéia ou perfurando seu peito. Tinha pensado em algo que coubesse num momento como este havia tempos, mas convencera-se de que seu lugar. Embora lhe interessasse a idéia de um atentado contra seu senhor, era preciso bom-senso. A captura por homicídio de seu senhor traria muito mais determinação para o seu carrasco do que a simples blasfêmia. Por último, havia pensado em Deus, mas se Deus resguardava-se quanto à postura de seu senhor, teria alguma simpatia por um humilde servo que perdia mais tempo em igrejas do que na terra a trabalhar. Começa a juntar suas coisas.

"Pietro..."

"Sim, meu senhor?"

"Busque e escolte o senhor Yuri à sua nova morada, o 3º estábulo. Que seja a definitiva, entendeste?"

"Sim, meu senhor."

"Ah, e Pietro... A cidadela não deve achar-se informada dos terríveis desígnios que Deus, o bom Deus reservou ao seu companheiro, sim? Os cães estão sempre famintos."

Os segundos seguiam-se rápidos demais nos movimentos apressados de Yuri e espaçosos no caminhar calmo de Pietro. A porta se abre e Yuri vê seu algoz de longe, e ele também é visto. A obviedade da fuga faz Pietro lançar-se numa corrida despassada enquanto busca o facão na cintura. Os pertences foram jogados como obstáculos. O brilho metálico anuncia que é seu fim nesta terra ou recomeço noutra mais distante, no Rio das Almas. Era dia, um dia claro. E ele se perguntava onde estava Deus. Talvez ele não tenha acordado hoje, pequeno.


27 de abr. de 2011

O Empalhador de Zebras - capítulo IV

Ramiro Simch
@miroez


"Lá tão elas, senhor: as punda milia!" O aviso me reativa. De fato, já se vê a manada, bebendo água em um riacho ao norte. Também por ali, dois ou três barracos se equilibram embaixo desse sol de merda. Não chegam a ser um problema, mas preciso levá-los em conta na missão. Pelo menos ainda estamos a uma distância confortável da aldeia mais próxima, Makineh. Não vão haver imprevistos.

Tshombe estaciona a caminhonete e seguimos a pé, pra não espantar as zebras. Chegando perto das cabanas, o crioulo ergue a espingarda e - fiu - fiu - bota os bichinhos pra dormir. O resto foge, mas duas delas não levantam mais. Tranquilidade.

Um casal de velhos observa a cena da porta de uma das casas. As outras tão fechadas. Vou até eles. Os dois já sabem o que tá acontecendo ali. Umas moedas pulam do meu bolso e são o suficiente. Boquinha fechada, hein - foi mais limpo do que mandar pra vala os dois mortos-vivos. 

Pegamos o automóvel e vamos colher os frutos. Me sinto bem enquanto colocamos os animais na caçamba. Foi tão fácil. Me sinto eficiente. Chego até a sentir uma quase simpatia pelo pobre Moïse.

Deu. O negão entra na caminhonete enquanto eu limpo a bota. Por acaso, viro a cabeça pras cabanas. Fico sem ar. Tem uma outra mulher olhando pra nós e falando rápido no celular, uma mulher que não tava ali antes. Uma branca. Uma estrangeira.



**

capítulo I
capítulo II
capítulo III

25 de abr. de 2011

Pilhas

@pv_lopes


- Guri, vais na venda do Seu Bento e compra as pilhas para o rádio. Diz para ele marcar no caderno que no final de semana eu passo lá para acertar.
- Depois eu vou.
- Tu vais agora! Já viste que horas são?

Seu Ambrósio já estava preocupado. Católico fervoroso, via que o silêncio imperaria às 18:00 horas. Caminhava da sala para a cozinha, olhava pela janela e nem sinal do guri.

-Onde se meteu esse guri? Mandei no Seu Bento e até agora não voltou. Deve ter ido fabricar as pilhas.
- Calma, Ambrósio. A venda deve estar cheia. Logo ele volta.
- Espero que antes das 18:00 horas, senão teremos uma conversinha.
- Olha lá, ele vem chegando.

As pilhas estavam ali, prontas para fazer o rádio funcionar e trazer a tranquilidade para a  casa.

Depois das pilhas novas, o rádio podia ser ouvido no portão. Tocava Teixeirinha quando o locutor interrompe a música.
- Peço desculpas aos ouvintes por parar o Teixeirinha, mas adianto que o Tordilho Negro será domado. Interrompi porque está na hora de ouvir, diretamente da Casa Canônica, a hora da Ave-Maria, com a voz diabólica do Padre Alcides.
- Voz diabólica? Teria sido melhor não ter comprado as pilhas. 

24 de abr. de 2011

Vrolijk Pasen

Nada melhor que a Páscoa para um coelho. Me sinto motivado nessa época. Meu blog vem crescendo, em termos de conteúdo e público, e quero agradecer a todos os envolvidos pelo sucesso que venho tendo no Brasil.

Independente de crença, ideologia, raça, filo, classe e ordem: vrede aan alle mensen!

22 de abr. de 2011

Fazenda Pôr-do-Sol

Ana Elizabeth S. de Azevedo
@anabebeth

Voltou.

A sensação de retornar àquele lugar era algo que nunca antes sentira.
A porteira parecia mais velha do que na sua lembrança. A pequena placa de madeira com o escrito "Fazenda Pôr-do-Sol" estava na diagonal. O horizonte parecia menor, porém as árvores ao redor da casa branca, agora com aspecto mais antigo que nunca, continuavam verdes. O antigo galpão nos fundos da casa parecia estar caindo aos pedaços. Os cavalos pastando não eram mais os mesmos. O sol que aquecia aquela paisagem há tempos longe de sua visão, esse sim, continuava igual.
Haviam se passado 14 anos.

Sempre foi relutante ao desejo que seu pai tinha para ela - de continuar a vida na pequena, mas próspera, Fazenda Pôr-do-Sol - e fugiu dali com 16 anos. Deixou para trás a tranquilidade da vida no campo, sua infância, sua família e suas primeiras experiências.

No exterior, viveu a vida que pensava querer. Bem educada, culta e com muitos diplomas. Volta e meia o som do campo ecoava em sua mente e ela rapidamente balançava a cabeça para desorganizar as memórias.

Hoje, parada à frente da porteira, sentia-se desnorteada. Sempre negou, mas os desejos de voltar sempre habitaram seu coração. Porém nunca havia imaginado retornar sob tais circunstâncias.

O lugar parecia bem cuidado, como nos tempos do velho coronel. Ela bem sabia que ele não tinha condições há tempos de tomar conta da estância, e hoje ele não estava mais lá. Era por isso que tinha voltado. Estranhou, o lugar realmente parecia bem cuidado.

Madura, com muitas histórias vividas, tinha feito questão de esquecer da primeira. O primeiro amor veio junto com a primeira dor, talvez a pior de todas elas. Mas ao andar por aqueles caminhos, sob as sombras daquelas mesmas árvores, ao avistar todos os cantos e quadrados onde aquela história havia se passado, era impossível não lembrar.

Já não conhecia o capataz, foi logo se apresentando. Ele espantou-se, a notícia naquelas bandas era que a filha do velho coronel havia morrido no exterior. Espantou-se ela. Os sentimentos de culpa e arrependimento enfim a inundaram por completo, chorou.

Depois de rever a maior parte da propriedade e da casa branca, lutando contra todos os sentimentos sem sucesso, sentia-se totalmente perdida e, finalmente, em casa.

Subiu no lombo de um cavalo cor de mel, que obedeceu suave ao seu toque, e o galope seguiu-se tranquilo. Havia esquecido da perfeição daquela sensação de liberdade completa, ao trotear campo afora apreciando o final de tarde, sentindo o abraço dos últimos raios de sol do dia.

Talvez um pouco tarde demais, decidiu realizar o desejo de seu recém falecido pai. Avistou ao longe a casa branca, a porteira e as árvores, sentiu o poder do campo e a tranquilidade invadiu seu coração. O dourado invadia todo o horizonte quando, de súbito, escutou o trote de outro animal.

O galope do cavalo baio à frente seguia forte e ela mal conseguia reconhecer a silhueta montada no animal. Mas, nesse caso, o coração sentia o que seus olhos não viam. Aquela primeira história, com um final arrancado à força 14 anos atrás, reabria suas páginas nessa paisagem acolhedora dos pampas. Ele vinha a seu encontro, agora que sabia que ela estava viva, decidido a esquecer as dores do passado, assim como ela.

As consequências daquele reencontro ainda são uma incógnita.
Mas parece, corre o boato por aquelas bandas, que a Fazenda Pôr-do-Sol novamente vive não só da simplicidade, mas do amor e de vivências que aquecem a alma.

20 de abr. de 2011

DECLARAÇÃO DA IGNORÂNCIA UNIVERSAL

Ramiro Simch
@miroez

NÓS NÃO SABEMOS NADA.

Pense em tudo o que você supostamente sabe sobre Geografia. Agora conjure seus conhecimentos em Enfermagem. Agregue aí também aquilo que você entende de Filosofia, Bebidas Fermentadas, Música, Linguística, Comunicação e Gíria Carioca. Enfim, imagine um ajuntamento de todo o conteúdo qualificado residente em seu cérebro.

Isto tudo NÃO É NADA. Ok, é alguma coisa, mas (como também entendemos de Matemática heha) aqui usaremos arredondamentos. Em termos práticos, VOCÊ NÃO SABE NADA.

Com a consciência da amplidão de todo o saber humano já produzido (amplidão que você nem pode estipular – apenas sonhar com ela), se torna ululante que o que qualquer e todo indivíduo no planeta sabe não chega nem medianamente perto de tudo, seja por causas temporais1; infra-estruturais e espaciais2; sociais3; e biológicas, já que é provável que nosso almoxarifado mental não tenha espaço pra tanto. Só não afirmo isso porque pouco sei de Neurociência e tal.

NÓS SOMOS IGNORANTES. Imagina então se acrescermos nessa conta a(s) sabedoria(s) do(s) povo(s). Cada um de nós DESCONHECE praticamente toda a matéria intelectual, ACADÊMICA OU POPULAR, que há. Cada pessoa sempre IGNORARÁ a aterradora maioria do grande plasma de conhecimento que flutua sobre nossa dimensão, mesmo porque esse plasma está em constante expansão, minuto a minuto.

Depois de parágrafos repetindo a mesma coisa, eu devia dizer algo produtivo. Só que não tenho muito mais pra falar. Até aqui, esse texto vem parecendo pessimista – mesmo que minha intenção fosse a neutralidade, a pura constatação de uma verdade absoluta.


“SEÇÃO OTIMISTA” – ou um pouco de apaziguamento

Tudo dito anteriormente é real, e no horizonte ainda não há vislumbre de que deixará de ser. Mas não faz mal. Se o TAMANHO da Parcela de Saber do ser humano mais inteligente difere apenas infimamente da que possui o homem mais ignorante,  o que realmente importa é a NATUREZA de cada uma dessas Parcelas. Simplesmente existem conhecimentos melhores que outros.

Nunca quis fazer uma declaração apocalíptica a ser usada pra acabar com os delírios de grandeza do seu coleguinha sabichão (embora esse seja um bom uso do texto – eu apoio heha). Não devemos, e nem precisamos, nos apavorar com a sensação de insignificância no meio do oceano intelectual. Devemos, ao invés, pensar na melhor forma de nadarmos nesse oceano. Não temos que tentar escolher diretamente áreas dele como foco da nossa atenção, mas escolher trajetos que, por sua vez, nos levarão às zonas possivelmente influentes de fato na nossa vida e nas nossas ideias.

Na verdade, esquecer que esse mesmo oceano imensurável e inalcançável foi constituído gota a gota por pessoas como nós é que é ignorância. Somos uma espécie social e comunitária, e, por conseguinte nosso saber também. Não importa o quanto o individualismo constituído contemporâneo negue isso.

Me corrijo: VOCÊ não sabe de nada. EU não sei de nada. NÓS SABEMOS DE TUDO. Segue o baile.


P.S. Dos poucos que lerão isso, não espero que todos entendam o que eu quis dizer. Meu ponto de vista é específico, e nem eu sei se fui claro. Já tentei escrever esse negócio tantas vezes que não importa muito mais.

P.P.S. Ainda não sei se esse texto é válido ou se o assunto é irrisório demais. Mas, pensando bem, quanto mais irrisório, mais válido.

P.P.P.S. Anyway, um pouco menos de arrogância sempre é interessante.


#heha



________________________
1 Nós vivemos por muito pouco tempo. Vivemos intelectualmente por menos tempo ainda.
2 Como você vai conseguir levar pra casa a biblioteca de um templo do Tibet? Mesmo se pudesse, ela não caberia na sua sala.
3 Sério, ninguém vai esquecer as cervejas de sábado por toda a vida pra estudar mais a fundo as tribos esquimós existentes no século XVII... Hm, você vai? Sorry.



18 de abr. de 2011

A Short Love Story

pv_lopes

No último casamento que fui, o padre proferiu o seguinte em seu discurso:
¾ Ela não te ama por causa dos teus lindos olhos. Ele não te ama por causa da tua irradiante beleza. Vocês amam porque amam, não precisa explicação.

Uma frase tão sublime capaz de desmontar toda a complexidade de um sentimento e emocionar muitos dos presentes.
São momentos como esse que revelam a importância dos gestos mais simples, os olhares em silêncio, as mãos dadas no sofá da sala.

Momentos como os apresentados no filme abaixo.



A SHORT LOVE STORY IN STOP MOTION from Carlos Lascano on Vimeo.




Filme: A Short Love Story in Stop Motion
Direção:  Carlos Lascano
Site: http://www.carloslascano.com/carloslascano/Home.html

15 de abr. de 2011

Alícia e Pedro

Gabriel Oro
@orofeelings

Pedro trancava o escritório e entrava no carro confiante de que este seria o ano. Sabia que naquele exato momento Alícia o esperava em casa, preparando uma pomposa refeição e planejando as mais cruéis, absurdas e obscuras formas de torturas medievais, só para o caso de ele esquecer. Mas ele não havia esquecido; desta vez, este ano, este vinte e um de agosto não seria de culpa e de brigas, pois completavam-se quatro primaveras desde que eles começaram o namoro e Pedro, finalmente, estava preparado.

Haviam sido dias difíceis, mais uma vez. Há exatamente 365 dias ele ouviu sua amada discursar por uma hora e quarenta minutos sobre como ele não lhe dava valor. Meia hora a mais que no ano anterior. Ah, o ano anterior... Naquela vez, Pedro lembrou da data apenas no caminho pra casa, com as lojas já fechadas, e acabou presenteando-a com um cartão de posto e um buquê artificial de cinco reais, mas que valia uns três. O desespero de percorrer a cidade durante a noite, todos os esforços para obter aqueles presentes, que passaram sem o menor reconhecimento...

Mas hoje ele havia traçado um caminho à prova de erros. Do início ao fim a noite seria perfeita. Os chocolates que abririam sua empreitada eram os preferidos de Alícia, o champanhe que regaria o jantar era aquele mesmo que umedecera seus lábios logo antes do primeiro beijo. Pedro percorreu lojas em cantos nefastos da cidade para achar um disco de vinil, sim, vinil, que contivesse a música que tocou no restaurante naquela noite, a música que emoldurou um beijo inesquecível. Ele sabia que ela adorava discos, sabia que ela adorava a voz de Frank Sinatra, e sabia que ela adoraria que lembrasse.

Ao sair do trabalho colocou seu paletó, passou o perfume que preventivamente levara consigo, um gel para cabelo e até um creme para a pele. Conferiu se tudo que ele havia comprado estava no banco de trás e se dirigiu para a casa do Alencar, que tinha se comprometido em guardar algo para Pedro. Em uma caixinha branca e delicada, no fundo da gaveta de meias do Alencar, o golpe de misericórdia aguardava, a última cartada, o all in vitorioso que acabaria com as fichas de Alícia, o último presente da noite: um discreto porém elegante colar de pérolas banhadas a ouro branco. Seria uma mosca no mel.

Nosso herói havia feito seu dever de casa, sabia que sua mulher amava pérolas, sabia que os colares desse tipo estavam na moda, algo que ela prezava, e sabia que o presente era mais caro que qualquer coisa que ela o tivesse comprado, o que resultaria em alguma compensação, possivelmente física, possivelmente com juros...

Com o colar seguro em sua caixa, os bombons e o disco debaixo do braço, perfumado e hidratado, Pedro entrou confiante em sua casa. Alícia estava muito bem vestida, tão bonita quanto da primeira vez em que a viu. A comida tinha um cheiro magnífico.

Alícia se aproximou sorrindo alegre, vendo que enfim ele havia lembrado. Ela caminhava em sua direção, era isso, eles se beijariam, ela amaria os presentes, talvez acabassem até ignorando o jantar e indo direto ao quarto. Estava tão perto, era agora, “Eu consegui! Dessa vez eu consegui!” pensava Pedro, quando de repente os olhos de Alícia se fixaram em algo no lado direito de seu peito. A expressão dela fechou na hora, mas seu corpo seguiu chegando mais perto, mais rápido. O coração de Pedro quase saltava pra fora quando sua esposa esticou o braço em direção ao bolso de seu paletó e retirou de dentro dele a calcinha de Claudete, a secretária, displicentemente esquecida e parcialmente exposta. Como é que o desgraçado do Alencar não avisou...

Ela saiu do apartamento naquela noite para nunca mais vê-lo, nem a Pedro nem ao apartamento. E nosso herói ficou parado ali, sem saber direito o que havia acontecido, com pérolas em uma mão, chocolate na outra e Sinatra caído ao chão, confortavelmente embaixo de uma calcinha.

14 de abr. de 2011

Ouviu falar? Que horror!

ramiro simch
@miroez

o sol nasceu em cima da rua Águia
do jeito que nasce há quase sete verões
quadrado, róseo, curioso, pimpão
assim a rua Águia enxergou seu sol.

e o pequeno Rael? acordou às nove,
lavou seu pequeno rosto, bebeu de seu pequeno copo
comeu um pequeno bolo junto a seu grande pai
pegou sua grande bola, saiu do pequeno lar.

contornou o quarteirão, suave local
e a rua Águia saudou uma vez mais
o passar do pequeno marechal.

mas veja só, momento aflito!
fatal acidente, logo ali na frente
interrompeu o passeio tão bonito.


11 de abr. de 2011

Sótão

pv_lopes


Algumas músicas causam em mim uma nostalgia daquilo que não foi vivido. Sempre vem a saudade de passar as tardes no sótão, com o toca-discos e alguns vinis de rock.
The Smiths seria representado pelo disco The Queen is Dead, U2 pelo The Joshua Tree, Engenheiros do Hawaii pelo Longe Demais das Capitais.
Haveria nas paredes pôsteres de bandas e da Cindy Crawford. Seria pintado de branco e vermelho, uma escrivaninha ao lado da janela.
Seria iluminado pelo sol de outono e teria em frente à janela uma árvore de folhas largas.
Um típico refúgio para a confusão de sentimentos que são vividos na adolescência e se tornam presença nas conversas de bar para o resto da vida.
E, ao contrário do que clamou o Konijn, não haveria a erva que é comumente consumida em seu país de origem, afinal cada um tem seu refúgio.

8 de abr. de 2011

Eu durmo na posição dos mortos

Ariel Engster
@ensta


Eu durmo na posição dos mortos no caixão. Não fui eu que percebi isso, claro. Meus amigos me disseram. Com fotos provaram-no. E depois disso já me vi indo dormir com as mãos cruzadas sobre o peito, já acordei em tal posição.

Meus amigos fizeram troça, achando bobagem. Mas vi, numa ou outra cara, um medo secreto daquele ato nefasto: que motivo me levava a assumir essa postura?

Ouvi suporem que eu antecipava a hora do passamento. Que eu brincava com ela. Ou que me preparava para ela. Ouvi que eu não batia bem da cabeça. E que ansiava por bater as botas.

Alguém logo gritou: “é filho de pastora luterana, cresceu enterrando os mortos!”. Outro disse: “Vive ouvindo réquiens noite adentro!”. Um terceiro retrucou: “Quê! É apaixonado pelo Nosferatu!”.

Fiz-me quieto. Nada disse. Por que não muito havia a acrescentar. Não muito havia a negar. Eu era aquilo que diziam. Fazia aquilo que diziam. Eu não era senão uma pessoa funesta.

Poucos conheço que tanto se importem com a morte. Poucos aí estão para ouvi-la. Eu não me acomodo. Não a aceito. Não a entendo. Eu a temo.

Eu, crescido numa casa cristã, descobri que Deus só quer bem quem o ama. Que criou a todos para adorá-lo. Se não venerá-lo, é inferno na certa. Ou seja, ninguém mais egocêntrico que Deus. “Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos” diz Romanos 14.8. Eu, que não sou de puxar-saco de ninguém, estaria condenado.

Infelizmente, todas as religiões parecem ser assim. Todos os destinos parecem ser o mesmo: o louvor ou nada. A outra opção é não crer em ninguém e aceitar que após a morte tudo acaba. Que existimos e temos consciência disso por nada. Que amamos pessoas e as vemos partir e nunca mais estaremos juntos delas. Que somos num ambiente injusto. Que perderemos, não importa o que aconteça.

Eu queria poder fazer como Bergman fez em O Sétimo Selo: jogar xadrez com a Morte, postergar a hora derradeira enquanto fosse possível. E queria, quando chegasse o momento, me despedir cantando belo como fez Noel Rosa: “Quando eu morrer, não quero choro nem vela. Quero uma fita amarela gravada com o nome dela.” Ou, ao menos, conseguir não pensar nisso até lá.


Senhoras e senhores,

estou adorando.

Tantos lugares do mundo e do submundo já me conheceram, que tenho ainda mais prazer e convicção em dizer que ik hou van Porto Alegre. É por causa do Brasil que esse blog existe. O ambiente local é que me inspira. Nunca antes na(s) minha(s) vida(s) tive necessidade de um espaço para falar das minhas experiências. Hoje tenho muita.

Mas não quero só escrever. Fico feliz em poder ler e divulgar conteúdo humano aqui. E quero mais, mais de vocês.

Estou dando início a uma nova era no estabelecimento.

Pedi a algumas mensen, que conheci cá mesmo, para injetar em postagens um pouco da ótica deles sobre os tudos, os nadas e os meio termos. Eles passarão a dividir esse logradouro comigo, com o PV e com o Ramiro também. Cada semana um. Uma vez por mês cada. A princípio. A partir de hoje, vrijdag.

Além deles, qualquer um com algo a dizer, diga. Eu quero ler e mostrar pra todos. Mas não gosto de cartas. Enviem para coelho.konijn@gmail.com. “Busquem conhecimento”.

Laten we gaan!


Het Nederlandse Konijn Van Brazilië
O Coelho Holandês Do Brasil

2 de abr. de 2011

A Ditadura brasileira ainda viva – a cidadania torturada


Alexandre Haubrich
@alexhaubrich


Aos quatro anos de idade, Edson Teles entrou em um prédio na Rua Tutóia, no bairro do Paraíso, em São Paulo para encontrar os pais, que não via há alguns dias. Simpáticos nomes o da rua e o do bairro. Edson ouviu a voz da mãe chamando seu nome, mas, quando se virou, não reconheceu o rosto e o corpo que portavam aquela voz. Em seguida, encontrou o pai, em outra sala, sentado em uma cadeira aparentemente normal para uma criança. Mas havia cintas de couro nos braços da cadeira. Era 1972, e Edson visitava os pais no DOI-CODI, centro da repressão da Ditadura Militar brasileira. “Meu filho perguntou 'por que o pai é verde?' e minha filha perguntou por que eu estava azul”, contou anos atrás a mãe de Edson, Maria Amélia de Almeida Teles.

Na última semana, em um seminário em Porto Alegre, Edson desabafou: “me envergonho de ser brasileiro. Oferecemos o Brasil para ser paraíso dos torturadores. Se torturarem em nome do Estado, aqui são anistiados”. E Edson e sua irmã Janaína não são um caso raro. Muitas crianças viram seus pais serem torturados pelo Estado brasileiro que, entre 1964 e 1985, impôs a seus cidadãos o fim da cidadania e de qualquer possibilidade de dignidade. Socos e pontapés eram carinhos. A violência vinha através de choques elétricos por todo o corpo, afogamentos, fuzilamentos simulados. Homens e mulheres, muitas vezes nus, eram pendurados em paus-de-arara, humilhados de todas as formas, reduzidos a nada. E se Edson e Janaína não são um caso raro, e tampouco a tortura a que foram submetidos seus pais foi um caso raro, também não foi a tortura a única forma pela qual cidadãos brasileiros foram agredidos por seu próprio Estado.

Assassinatos e sequestros também eram comuns. Sim, hoje ainda são. Mas, naqueles anos, quem cometia esses crimes era o Estado, e os cometia como Estado, não apenas através de indivíduos que corrompiam as instituições. O Estado e seus agentes eram os criminosos, os assassinos, sequestradores, torturadores. Brasil nunca mais. Muitos cidadãos brasileiros foram obrigados a fugir do país. Deixaram para trás seu lugar e seus familiares, amigos, colegas. Deixaram para trás toda uma vida para começarem a construir outra longe daqui.

O silêncio, para os militares e civis que referendaram o Golpe de 1964, era a causa pela qual lutavam. Gritos? Permitidos apenas nas salas de tortura, e apenas gritos de dor. Parte significativa da imprensa apoiou a Ditadura de seu início até as portas de seu fim, quando percebeu que, ou abandonava o moribundo, ou morreria junto. A outra parte da imprensa, porém, a parte séria, viu muitos de seus representantes torturados, desaparecidos ou acuados. O fetiche do silêncio.

Derrubada a democracia que se aprofundava no governo João Goulart, os golpistas não queriam mais saber de política, apenas de poder. Um professor falando sobre política em aula poderia ser denunciado por um aluno como terrorista. A mesma coisa em conversas de bar ou de qualquer lugar. O risco de tortura, assassinato ou “desaparecimento” sempre iminente. Se antes a política já era afastada do povo, em 64 o Estado tirou do povo o direito de se aproximar da política.

Com a chamada “abertura democrática” da década de 1980, não acabou-se verdadeiramente com a Ditadura. Até hoje suas sobras contaminam a vida dos brasileiros. A herança da Idade das Trevas tupiniquim está no autoritarismo e na violência policial, na despolitização popular, na agressividade da direita, na ignorância, no conservadorismo moral preconceituoso, racista, machista e homofóbico. Esses resquícios sobrevivem também no imaginário demente de alguns políticos e alguns militares que anseiam pela reinstitucionalização de todos esses absurdos.

Continuam dominando importantes setores do país as pessoas que financiaram e apoiaram de diversas formas a Ditadura Militar. Grandes empresários, destacados políticos, graduados militares. Os donos da comunicação brasileira também entram nesse bolo. É por tudo isso que, enquanto nossos países vizinhos agem para limpar a sujeira deixada por suas respectivas ditaduras – sem varrer essa sujeira para baixo do tapete –, aqui o silêncio segue imposto.

É para punir os responsáveis pelo massacre da cidadania brasileira que é necessário revisar a Lei da Anistia, assinada em 1979, que, ao mesmo tempo em que beneficiou quem lutava por um Estado democrático, absolveu automaticamente as pessoas que, em nome do Estado brasileiro, cometeram todos os tipos de crime. A tortura e o assassinato em nome do Estado foram permitidos, o que configura uma arbitrariedade e um desrespeito aos brasileiros representados por esse Estado. Os cidadãos que lutaram contra a Ditadura Militar já foram fortemente punidos das mais diversas formas ainda durante aquele período. Os representantes dessa Ditadura, não. Além disso, a Lei da Anistia foi aprovada pelos opositores ao regime com uma arma na cabeça. Da mesma forma que obtinham confissões através da tortura, os governantes de então impuseram sua própria imunidade como condição para deixarem o povo brasileiro ser re-empoderado minimamente.

A abertura imediata de todos os arquivos da Ditadura Militar e a ampla divulgação de seu conteúdo, assim como o trabalho de resgate histórico do que vivemos, é outra obrigação do Estado brasileiro. Os cidadãos têm o direito de conhecer sua própria história, a história de seu país. Se o Estado é uma instituição da sociedade, e esta é formada pelo conjunto dos indivíduos, o Estado somos nós, e nós temos o direito de conhecer a verdade e o dever de lutar por esse direito. Para que não corramos o risco de retornar àquela situação de terror precisamos saber detalhadamente o que nos levou a ela o que a manteve por tanto tempo. Só assim, com a punição dos gerentes da nossa Idade das Trevas e com o direito à verdade, poderemos realmente encarar de frente as heranças daquele tempo que ainda nos assombram.