14 de mai. de 2011

Antes da Chuva Cair

Gabriel Oro
@orofeelings

Era tarde.

Tarde demais para eu estar acordado, mas não conseguia dormir. Alguma coisa no ar, algo que eu sentia a cada fechar de olhos, algo que há meses não havia sentido. Uma tensão deixava pesado o ar daquele lugar maldito, eu quase conseguia enxergar o ar que respirava. Mas não era pelo frio. Lá não existia frio.

Levantei daquele colchão maltrapilho e andei pela tenda. Leite. Em casa sempre me ajudou a dormir, vou tomar um pouco de leite e esquecer tudo isso. Peguei a lata com leite que alguém havia deixado por ali e liguei o fogo. Assim que o líquido começou a esquentar o cheiro entrou por minhas narinas e tomou conta do meu corpo. Por um segundo eu não estava ali. Era o melhor segundo em meses. Durante aquela minúscula fração de tempo, perdida entre aqueles homens sumidos naquela terra que os deuses esqueceram, eu fugi. Eu fugi porque eu lembrei. E lembrei de um jeito muito mais forte que de costume, muito mais real.

Lembrei dela.

Eu estava sentado em uma cama macia, com lençóis limpos, em um quarto bem iluminado. A porta se abria devagar, ela entrava sorrindo e olhando pra mim, meu Deus, como aquele sorriso era lindo. Ela se sentava na cama ao meu lado e se abraçava em torno de meu pescoço, seus braços me envolvendo, suas mãos macias tocando meu rosto. “A cada dia ele fica mais lindo.” Ela diz, me beijando de leve. “Ele tem os seus olhos...” E conforme eu me mexo pra abraçá-la, sinto em suas mãos o cheiro morno da última refeição que ela prepara para nosso filho todas as noites.

Nunca pensei que lembraria de minha mulher pelo cheiro de leite.

Desliguei a chama. Sentei e bebi devagar enquanto uma brisa triste entrava na cabana e afagava meu peito nu. Chuva, deve ser chuva. Aquela tensão que carregava o ar à minha volta só podia significar a iminência de precipitação, era exatamente aquele mesmo sentimento. Quando o céu silencia, quando todas as criaturas se escondem e o vento se vê livre para andar imperturbável pelas ruas, flutuando devagar, sem esbarrar em ninguém. Eu sempre senti isso, sempre tive essa tensão pouco antes que a chuva desatasse a cair. E sempre tive medo dela.

Choveu no dia em que ele me deixou. Choveu no último dia em que o vi.

Foi numa terça-feira à tarde e eu sentia essa mesma tensão no ar. Eu era uma criança e brincava no quintal quando o telefone tocou. Ouvi minha mãe falar por alguns segundos, e então tudo ficou quieto. Encontrei-a sentada na cozinha com o rosto nas mãos, quando me viu, me abraçou e chorou em meu ombro. Nunca tinha visto minha mãe chorar, era uma mulher forte. Eu abracei também e, sem ainda saber por que, chorei de volta. O motorista que atropelou meu pai não estava bêbado ou sob o efeito de qualquer substância, era um senhor honesto, tinha duas filhas, cumpriu sua pena e, mesmo sem dispor de muitos recursos, pagou todos os meses a dívida que o tribunal impôs, sem atrasar uma única vez até o dia de sua morte. Por toda minha vida eu odiei-o profundamente. Choveu muito forte, naquele mesmo dia, assim como na manhã seguinte, durante o enterro de meu pai.

 Os céus também choraram quando, anos depois, eu perdi o pouco que restava de minha fé. Ela foi se extinguindo gradualmente, até que uma manhã eu percebi que não restava mais havia. E finalmente, alguns meses depois, caiu uma nova tempestade no dia em que me alistei voluntariamente no exército. Choveu quando perdi meu pai, quando perdi meu deus e quando vendi a minha liberdade.

Por isso, aquele silêncio no ar me assustava.

Mas eu estava naquele lugar há quatro meses, e era a primeira vez que me sentia daquele jeito. Terminei o leite e deitei, quieto. Quatro meses de minha vida, longe de casa, sem dormir direito, acordando cedo, dividindo uma tenda com nove homens sujos com o sono mais pesado que eu já vi. E para quê? A noite estava escura demais, não havia lua ou estrelas no céu. Meu medo aumentava. Um som curto, tímido, cortou o silêncio. Uma gota no teto da barraca. Depois outra, e mais outra, até que tudo que se ouvia era a melodia sombria da água caindo no meio daquele quase-deserto. O deserto perdido no meio da guerra.

Peguei uma foto de meu filho debaixo do travesseiro. Olhei para ela por vários minutos, tinha mesmo os meus olhos. Antes de viajar, comprei uma bicicleta pra ele, sua primeira, e deixei do lado de fora de seu quarto, mal podia esperar para voltar e vê-lo andando nela. Meus olhos se encheram de lágrimas. A chuva diminuiu até parar por completo. Lembrei das últimas palavras que eu lhe havia dito antes de vir, que “não importava o quão longe eu estivesse, estaria sempre com ele, e nunca deixaria que nada acontece...”

A explosão que seguiu me jogou pra fora da cama. Meus companheiros gritaram, ouvíamos lá fora vozes finas e algum dialeto impronunciável. A tenda de frente para a nossa ardia em fogo e abria um rasgo vermelho sangrento no breu escuro da noite. Ouvi a voz dos comandantes ordenando que assumíssemos os postos de combate, me desesperei. Outra bomba caiu ali perto e eu só tive tempo de pegar o fuzil e colocar o capacete antes de sair de lá e ver o fogo tomando conta do acampamento. Subi na pequena torre de madeira que ficava sobre uma das trincheiras, meus companheiros ficaram lá embaixo, eu era o atirador. Carreguei o fuzil sozinho, olhei ao redor.

Outra bomba caiu ali perto, depois mais uma, pude ver minha tenda queimar, tudo que eu trouxera comigo estava dentro dela. Tiros ressonavam, mas eu não sentia cheiro de pólvora, nem de fumaça, pois o vento havia começado a soprar forte na outra direção e tudo que eu cheirava era o aroma da terra e da grama molhada que havia ao norte, me acalmei. Já havia passado a chuva, se eu morresse, já havia passado a chuva. Enxerguei de onde vinham as bombas.

Mas eu não queria.

Não era a primeira vez que eu pegava uma arma na mão.

Muitos anos antes, meu pai me encontrou brincando com seu revólver, que eu havia encontrado sobre o armário de seu quarto. Espaço para seis balas, eu tirei todas. Apontei a arma vazia para a parede e disparei. Um clique abafado e silêncio... meu pai viu. Tirou o revólver de mim, mas antes de guardar, resolveu se livrar da carga, abriu o revólver, de seis espaços, cinco estavam vazios. Eu esqueci uma bala. Naquele dia ele me fez prometer que eu nunca, nunca mais brincaria com armas.

Ele me fez prometer.




Parecia que apenas um deles tinha armamento pesado, mirando de uma trincheira improvisada. Acredito que nos vimos ao mesmo tempo, pois uma bomba caiu a metros de onde eu estava quase que no mesmo instante. Eu estava engatilhado, meu antagonista precisaria de alguns segundos para repor a carga. Apontei pra ele, senti o metal gelado do fuzil encostando em meu rosto, o gatilho ardendo na ponta de meus dedos. Firme... firme...

Eu não queria.

Firme... outra bomba explode a apenas metros de mim. Ouço um grito agudo, sinto medo. Seguro o fuzil ainda mais apertado em minhas mãos, faço a mira com cuidado, há espaço pra muitas balas nessa arma e muitas vidas nessas balas. Miro bem e fecho os olhos.

“Pai, me perdoa.”

E o tiro sai.

E a pólvora queima meu rosto.

A foto de meu filho ainda queima lá embaixo.



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